Audiência pública conjunta na Câmara, nesta quarta-feira (11) foi palco de tensões sobre política fiscal, crescimento e legado de governos anteriores, culminando em encerramento abrupto
Brasília – O caldeirão ferveu nesta quarta-feira (11), na audiência pública conjunta da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle (CFFC) e da Comissão de Finanças e Tributação (CFT) da Câmara dos Deputados que recebeu o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que atendeu convites de requerimentos aprovados de diversos deputados. A relevância inicial da audiência residia na expectativa de que Haddad apresentasse as perspectivas econômicas do País para o próximo ano, a médio e longo prazo, e esclarecesse medidas fiscais e tributárias em curso, mas o caldo entornou e o ministro abandonou a reunião após agressões verbais de congressistas da oposição.
Os debates foram marcados por um profundo contraste nas percepções sobre a situação econômica do Brasil. A audiência pública rapidamente se transformou em um fértil terreno para o embate de ideias e narrativas sobre a economia brasileira. De um lado, o Governo, representado pelo ministro Haddad e seus aliados, que apresentaram um panorama otimista de recuperação e avanços. Do outro, a oposição tecendo críticas contundentes sobre o aumento de impostos e o descontrole de gastos, culminando em momentos de alta tensão.
Haddad, inicialmente, enfatizou o retorno do crescimento econômico do país: “O Brasil termina este terceiro ano de Governo Lula com uma taxa média de crescimento de 3% ao ano, praticamente o dobro da taxa de crescimento observada nos 10 anos anteriores à sua posse”. Ele destacou ainda a taxa de desemprego na “mínima histórica”, a renda do trabalhador “bem acima das taxas de inflação”, e a criação de mais de “três milhões de empregos”. Ele apontou para a queda drástica da fome, com “mais de 15 milhões de brasileiros que saíram da situação de fome em apenas dois anos”, e o retorno do Brasil à posição de “oitava economia do mundo”, atribuindo esses resultados ao apoio do Legislativo e do Judiciário.
A reforma tributária sobre o consumo foi apresentada como um marco histórico, que visa a “completa digitalização” do sistema tributário, permitindo “aumentar a base e poder diminuir a alíquota cobrada; mais gente pagando, menos alíquota, para honrar o orçamento federal, graças ao combate à sonegação”, disse o chefe da Fazenda. A desoneração de 100% das exportações e dos investimentos também foi realçada como um fator de competitividade. Além disso, o ministro mencionou uma série de medidas de crédito e seguro, como o Desenrola, o Acredita e o Consignado Privado, pacotes de programas desenvolvidos pela pasta econômica que buscam melhorar a vida financeira da população e de pequenos empreendedores.
Na esfera social, o ministro celebrou a “mínima histórica” da taxa de desemprego, o aumento real da renda do trabalhador acima da inflação (inclusive de alimentos), o saldo de mais de 3 milhões de empregos formais criados (conforme dados do Caged), e a instituição de mecanismos de segurança como o encadeamento do Bolsa Família, Seguro-Desemprego e valorização do salário mínimo. Um dado que ressaltou foi a recuperação do Brasil como a oitava economia do mundo e a melhoria nas notas de crédito, permitindo a emissão de títulos com “spread de países que têm grau de investimento”, foram também pontos destacados na fala de Haddad.
O ministro defendeu as reformas implementadas e propostas pelo governo como cruciais para a sustentabilidade do ciclo virtuoso. A reforma tributária sobre o consumo foi classificada como a “maior da história do Brasil” e a “única feita em regime democrático”, fruto de diálogo com o Parlamento. Seus benefícios incluem a desoneração de 100% das exportações e investimentos, com a expectativa de reduzir em mais de 25% o custo de investir no Brasil. A proposta prevê um sistema tributário digitalizado, combatendo a sonegação para “aumentar a base e poder diminuir a alíquota”. O “split payment” e o “cash back” foram citados como inovações que trarão um dos sistemas tributários mais avançados do mundo. Entretanto, Haddad não mencionou que a reforma tributária tramita há 40 anos no Congresso, e não pode ser atribuída a uma articulação exclusiva de um governo petista.
No entanto, um dos pontos centrais da fala do Ministro foi a “dramática” questão da distribuição de renda e da tributação. Ele utilizou a metáfora do “morador da cobertura” que “não paga condomínio e o zelador está pagando o condomínio do mesmo prédio” para ilustrar a baixa alíquota efetiva de Imposto de Renda (2,5%) paga por quem ganha mais de um milhão de reais por ano, contrastando com a alíquota de 27,5% dos trabalhadores comuns. “A proposta de reforma do Imposto de Renda, que visa isentar ou diminuir o imposto para 15 milhões de brasileiros e tributar mais os milionários, foi defendida como uma correção de distorções, não um aumento generalizado de impostos”, explicou Haddad.

Questionamentos dos deputados expõem agendas dissonantes
- Deputado Bacelar (PV-BA) parabenizou Haddad, mas questionou o “impacto nas metas fiscais rígidas sobre a capacidade de investimento público”. Ele perguntou: “como o Ministério da Fazenda está planejando garantir espaço fiscal para investimentos públicos estratégicos e programas sociais essenciais, especialmente num contexto em que o crescimento econômico ainda é modesto e… a desigualdade social permanece gritante. Afinal, crescer sem investir é inviável, e investir sem incluir é injusto”.
- Deputado Pedro Paulo (PSD-RJ) embora elogiando o crescimento econômico e as políticas sociais do governo, o deputado expressou “preocupação sobre a questão fiscal”. Ele citou o “forte crescimento da dívida pública que nós estamos experimentando desde o início do mandato do Presidente Lula (PT), desde dezembro de 2022 — antes da posse para o exercício do terceiro mandato a frente do Brasil — , que era de 71% e hoje já é de 76%, e as previsões apontam para perto de 80 % neste ano e no ano que vem”. O deputado fluminense defendeu a busca por superávit e o controle de despesas, propondo um “pacto entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário” para enfrentar “despesas obrigatórias descontroladas”, “supersalários [do funcionalismo público em geral] e os penduricalhos [do Judiciário] “. Pedro Paulo também questionou a “renúncia fiscal” que, embora informada em R$540 bilhões, aponta para R$ 800 bilhões, e defendeu sua revisão “sem exceções”.
- Deputado Florentino Neto (PT-PI) buscou desmistificar a percepção de “descontrole dos gastos da União”, mencionando a redução do déficit do PIB e a diminuição da despesa de 19,5% (2023) para 18,8% (2024). Ele indagou como o Ministério “pretende fazer essa redução de 10% dos benefícios tributários”.
- Deputado Pedro Campos (PSB-PE) reforçou os pontos positivos da economia, enfatizando a saída de “20 milhões de brasileiros da fome” e a criação de “3,5 milhões de carteiras assinadas”. Ele criticou os “juros reais extorsivos” e a “bomba” fiscal deixada pelo governo anterior, mencionando a “luz sobre a questão das isenções fiscais, das imunidades, que hoje somam R$ 800 bilhões de reais”, citando o caso do iFood que recebeu R$ 300 milhões em benefício fiscal durante a pandemia sem justificativa prévia.
- Deputado Carlos Jordy (PL-RJ) e Deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) apresentaram uma oposição veemente. Jordy criticou as “trapalhadas na economia”, a inflação “explodindo” e os juros altos. Ele refutou a culpa do governo Bolsonaro, afirmando que este deixou um superávit de R$54 bilhões e que o governo Lula teve “R$ 230 bilhões de reais de déficit” em 2023. Jordy alegou que o governo Lula “aumentou o imposto ao menos 25 vezes, desde 2023” e criticou a proposta do IOF como uma “lambança”, buscando arrecadação via “imposto extrafiscal” [oIOF é um impostoregulatório e não arrecadatório como quer o governo). Nikolas Ferreira reiterou a percepção de que o governo pinta um “Brasil que não existe”, ignorando o “preço das coisas” para o cidadão comum, e questionou o “rombo fiscal” apesar da “arrecadação recorde”, reafirmando que “a culpa é sempre dele [ex-presidente Bolsonaro]”.
Em resposta às críticas da oposição, o ministro Haddad classificou a saída da reunião dos deputados Jordy e Nikolas como “molecagem” e acusou o governo anterior de ter um “superávit primário” em 2022 a custo de “calote em Governadores” (R$ 30 bilhões pagos pelo governo Lula), “calote de precatórios” (R$ 92 bilhões), e “barbeiragem da venda da Eletrobras” e acusou “depenaram a Petrobras, com a distribuição de dividendos, que superou R$ 200 bilhões de reais”. Ele defendeu que: “Assim qualquer um faz superávit primário” e insistiu que o governo busca “fazer a coisa certa”, reestruturando as contas públicas sem vender patrimônio ou dar calote. - Deputado Marcel van Hattem (NOVO-RS) corrigiu Haddad sobre a ausência de Bolsonaro em debates (devido a “facada: estava hospitalizado”) e reiterou que o governo Lula tem imposto novas taxas e impostos “a cada 37 dias” desde 2023, sem cortes de despesas. Ele questionou a posse de “ações na Braskem, na JBS, na Bombril” pelo Estado e criticou o aumento do IOF, a exclusão de partidos da reunião de líderes, a alta taxa Selic sob o novo presidente do Banco Central, e os “gastos da Janja [a primeira-dama sem cargo oficial no Governo]“.
- Deputado Jorge Solla (PT-BA) condenou a “política da mentira” e “bagunça” no Parlamento. Ele defendeu Haddad, argumentando que o esforço fiscal do governo é o “quarto maior esforço fiscal do mundo” e que houve “retorno de todas as políticas públicas” após o “País da terra arrasada” deixado pelo governo Bolsonaro. Solla perguntou quanto os gastos do governo seriam reduzidos se a taxa Selic caísse em 1% ou 2%, afirmando que o “gasto que tem que ser cortado” é o dos juros da dívida pública, e criticou a “recusa” dos 130 mil mais ricos do país em pagar impostos, chamando a proposta do governo de “tímida”.
A complexidade do debate foi intensificada pela questão da renúncia fiscal, com Haddad afirmando que os benefícios fiscais no agro somam R$158 bilhões e nos títulos isentos R$ 41 bilhões, valores que poderiam ser utilizados para programas sociais e investimentos. A falta de consenso e o clima de forte polarização impediram um diálogo mais produtivo em vários momentos da reunião.
A lógica por trás da ação fiscal: Transparência, Justiça e o Desafio da Governança
A audiência pública desta quarta-feira se insere em um panorama político-econômico brasileiro de intensos debates sobre a sustentabilidade fiscal e a distribuição de renda. O governo, através do Ministro da Fazenda, busca implementar um ajuste fiscal que, segundo sua visão, privilegia a correção de distorções e a justiça tributária, em vez de um aumento generalizado de impostos. A reforma do Imposto de Renda e a revisão dos benefícios fiscais são peças-chave nessa estratégia.
As implicações desses debates são profundas para diversas partes interessadas. Para o governo, a aprovação das medidas propostas, como a Medida Provisória sobre o Imposto de Renda e o IOF (que entrará em vigor no próximo ano), é crucial para garantir a meta fiscal de um “superávit primário estrutural” para o ano seguinte. O ministro Haddad enfatizou que essas medidas, embora difíceis, são essenciais para a saúde financeira do País, permitindo “mais crescimento, menos taxa de juros, mais emprego, mais igualdade”.
Para o setor produtivo, especialmente o agronegócio e o mercado financeiro, as propostas de revisão de benefícios fiscais e tributação de títulos isentos representam uma mudança nas regras do jogo causando imediata insegurança jurídica. O ministro defendeu que os benefícios fiscais atuais “não vão para o produtor. Não vão. De 60% a 70% ficam no meio do caminho, com o detentor do título ou o sistema bancário”, buscando justificar a necessidade de correção.
A discussão sobre o controle de despesas é outro ponto de tensão. Enquanto a oposição clama por cortes de gastos governamentais, Haddad defende a tese imposta por Lula e aponta para a necessidade de um “pacto” que inclua a discussão de temas como “supersalários” e “aposentadoria de militares”, além de “pôr ordem nos cadastros dos programas sociais”, sugerindo que a responsabilidade fiscal deve ser compartilhada por todos os poderes e setores. A proposta do deputado Pedro Paulo de uma revisão do “gás tributário” para R$ 800 bilhões também aponta para a necessidade de um consenso amplo sobre quem deve contribuir mais.
O debate também expôs a profunda polarização política e a dificuldade em se chegar a um consenso no Congresso. A postura agressiva de alguns parlamentares da oposição e a defesa veemente das políticas governamentais por parte de outros demonstram o desafio de construir pontes para soluções duradouras. A acusação de “molecagem” feita pelo ministro a deputados que deixaram o plenário é um sintoma da tensão e da dificuldade de manter um diálogo construtivo, impactando diretamente a capacidade de avanço em temas complexos. A transparência na divulgação dos “gastos tributários” por meio da DIRBI (Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades de Natureza Tributária), que vem a ser a declaração para Pessoas Jurídicas que utilizam créditos tributários decorrentes de benefícios fiscais, é vista pelo governo como um avanço importante para a sociedade saber “quem não paga imposto por benefício fiscal”, o que pode influenciar a opinião pública e a pressão sobre o parlamento para que essas medidas avancem.
A questão do Rio Grande do Sul, mencionada pelo deputado Marcel van Hattem, apesar de não ser central na fala do ministro durante o debate, indica a constante pressão sobre o Ministério da Fazenda para alocar recursos em situações de crise e a percepção de que a ajuda governamental pode ser insuficiente ou mal comunicada.

Confusão e gritaria
A medida a reunião avançava, com mais de duas horas de duração, o ambiente no recinto da Comissão tornou-se insustentável com intervenções e gritos dos deputados de oposição, que consideraram as falas de Haddad ofensivas e pediram a retirada de termos das notas taquigráficas. O presidente Rogério Correia, que presidia a audiência tentou manter a ordem, mas as sucessivas interrupções e o clima de “baderna”, especialmente de deputados não-membros da comissão, inviabilizaram a continuidade dos trabalhos. Diante do caos, o Presidente optou por encerrar a reunião abruptamente, pedindo desculpas ao ministro Haddad e lamentando a atitude dos deputados que, segundo ele, vieram para “fazer baderna”.
“Como os deputados não permitem que a Presidência dirija os trabalhos, eu não posso pedir à segurança para retirar os deputados baderneiros aqui de dentro. Então, eu vou ter que encerrar a sessão para que os baderneiros não fiquem fazendo baderna na reunião”, dando por encerrada a audiência.
Um país dividido
A audiência pública serviu como um termômetro para o cenário político e econômico brasileiro, evidenciando as profundas divisões sobre as estratégias para o equilíbrio fiscal e a justiça social. O ministro Fernando Haddad defendeu vigorosamente as políticas econômicas de seu governo, focando no crescimento, na geração de empregos e nas reformas tributárias e de crédito, que, segundo ele, corrigem distorções e promovem uma distribuição de renda mais justa. O debate também deixou claro o compromisso do governo em buscar um superávit primário estrutural, evitando medidas paliativas como a venda de patrimônio público ou calotes.
Por outro lado, a oposição levantou críticas contundentes sobre o aumento da carga tributária, o crescimento da dívida pública e a falta de controle de despesas, defendendo que o ajuste fiscal deve vir primordialmente do corte de gastos. A reunião não resultou em deliberações imediatas, mas delineou as linhas de batalha para futuras discussões no Congresso. A proposta de uma Medida Provisória sobre o Imposto de Renda e a revisão de benefícios fiscais, juntamente com a busca por um diálogo sobre despesas primárias, indicam os próximos os do governo.
Os debates futuros provavelmente continuarão a ser acalorados, dadas as posições firmes e as diferentes ideologias em jogo. A capacidade de se chegar a consensos dependerá da disposição de todos os atores políticos em ceder e priorizar os interesses do país sobre as disputas partidárias, com a necessidade de conciliar a responsabilidade fiscal com a demanda por políticas sociais e o investimento público.
O país precisa encontrar o caminho para a estabilidade econômica e a justiça social que a por um enfrentamento corajoso de “tabus” e “distorções” no sistema tributário e orçamentário.
Reportagem: Val-André Mutran é repórter especial para o Portal Ver-o-Fato e está sediado em Brasília.