“É uma insanidade”, reagiu o leitor do Diário do Comércio e Indústria – DCI, de São Paulo, identificado apenas como Wilson, no site do jornal, no dia 5 de maio de 2010.
Naquele dia, Wilson leu, no site, a notícia de que, o então prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab queria implodir o gigantesco Elevado Costa e Silva, como o viaduto foi chamado oficialmente, embora para a população ele tenha sido sempre o Minhocão.
Com aquela obra, Maluf provocou a deterioração de uma grande área do centro antigo de São Paulo, a partir de 1971, quando foi inaugurada por ele.
Maluf encarnava o tipo de político profissional conveniente aos militares que tinham se instalado no governo do país, depois do Golpe de Estado de 1964.
Adulador, conivente com arbitrariedades dos militares, ele foi imposto como prefeito à população de São Paulo, pelos militares, em 1969.
E, logo exibiu o comportamento característico dos representantes da Ditadura na gestão das cidades do país: o da completa falta de respeito à ambiência histórica criada pelos construtores antigos do nosso país.
Algo inissível por parte de qualquer gestor público dotado de um mínimo de sensibilidade para as riquezas urbanas imateriais.
Entre as quais a ambiência histórica, gerada pela simples presença de uma casa, ou um palácio, ou uma praça construída no espaço de uma cidade, num momento irrecuperável do ado.
Cuja evocação só ocorre através da preservação daquele ambiente emanado daquele bem patrimonial arquitetônico, do qual, deve ser visto como algo inseparável.
Uma cidade não apenas conta o seu ado, afirma o escritor e jornalista Ítalo Calvino, em “As Cidades Invisíveis”.
A cidade contém o seu ado, ele acrescenta.
Como a mão humana contém suas linhas.
O ado de uma cidade – Ítalo prossegue -, está escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras.
Cada segmento gravado em arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras.
A Estava a Praça Roosevelt embebida como esponja – conforme diz Ítalo – das recordações dos frequentadores dos seus cinemas de arte e boates, dos anos de 1960, quando, a partir dela, Maluf estendeu os 3.400 metros do Minhocão, cinco metros acima do nível do chão.
Embora antes, a praça já houvesse sido transformada em frios blocos de cimento por outro prefeito daquele período, Faria Lima.
Maluf deu ao viaduto o nome de Elevado Costa e Silva porque queria adular o ditador militar a quem devia o cargo de prefeito de São Paulo.
(Só recentemente o Minhocão teve seu nome oficialmente mudado para Elevado Presidente João Goulart, numa decisão de justiça tardia ao governante deposto pelos militares).
Desde sua inauguração, o Minhocão levou barulho e fuligem aos prédios da Avenida São João, da Rua Amaral Gurgel, das avenidas São João e General Olímpio da Silveira e do Largo Péricles.
O valor dos imóveis emparedados, na área, logo despencou no mercado imobiliário.
E, desde então, seus moradores sofrem com a sua degradação.
Por isto, a “insanidade” de Kassab recebeu, através da Folha de S. Paulo, incentivos animadores de arquitetos, de engenheiros e de urbanistas.
Como, entre outros, Flamínio Fichmann, consultor de Engenharia de Trafégo; João Virgílio Merighi, professor de Engenharia de Transportes, da Universidade Mackenzie; Nilson Ghirardello, coordenador da Câmara de Arquitetura do CREA-SP.
Infelizmente, o Minhocão não foi destruído como queria Kassab.
Mas, ao longo dos anos, está sendo progressivamente desativado, e, transformado em área de lazer.
Quanto ao Pará, quem pode esperar de um de nossos es público a mesma abençoada “insanidade” de Kassab, na correção das pavorosas distorções que a mesma Arquitetura da Ditadura Militar, trouxe para nossos municípios?
Se surgisse este público, por algum milagre, ele teria diante de si tarefas hercúleas, em Belém.
Teria de lidar com prédios como os ocupados pelo Palácio Cabanagem, na Praça Dom Pedro II, e pelo antigo Tribunal de Justiça, na Praça Felipe Patroni.
Cujas arquiteturas violentam a ambiência histórica criada pelo belo Palácio do Governo, atual Palácio Lauro Sodré, construído em estilo clássico italiano, por Antonio Giuseppe Landi, na segunda metade dos anos de 1700.
E com outros estrupícios semelhantes.
Como o prédio levantado no governo do último ditador militar, João Figueredo, na Boulevard Castilho França.
Um espigão modernoso em total desarmonia com o ambiente histórico criado pelos casarões daquela antiga, preciosas lembranças das casas exportadoras na Belle Époque da Amazônia.
Belém é uma obra de 400 anos, levantada com a contribuição dos construtores religiosos, do século XVII; de engenheiros-militares, do século XVIII; de engenheiros civis do Ciclo da Borracha, no século XIX.
E de ex-alunos da primeira Escola de Engenharia do Pará, na primeira metade do século XX, para quem o aprendizado da construção de edifícios foi uma conquista.
E não um instrumento a serviço da descaracterização das cidades do Estado, como a que foi estimulada pela Ditadura Militar.
Descaracterização que, desgraçadamente, não desapareceu, em Belém, com a chamada redemocratização.
Pois foi mantida por meio de um processo de verticalização realizado de modo bárbaro, anti-civilizatório.
Um paraense consciente disto é o historiador Geraldo Mártires Coelho.
Num e-mail, ele interpelou publicamente as autoridades públicas do Pará.
Escreveu Geraldo:
– Fala-se do calor da cidade, mas pergunto-me: que legislação é essa que permitiu o levantamento do paredão de edifícios à margem da nossa baía? Espigões estão plantados na Pedro Álvares Cabral, entre Doca e Arthur Bernardes. E nada é feito para impedir ou disciplinar essa arquitetura criminosa e predatória. Onde está e onde fica o Poder Público?
*Oswaldo Coimbra é escritor e jornalista
Translation (tradução)
What public strator would remove
this building from the old square?
“It’s insanity,” reacted a reader of the Diário do Comércio e Indústria (DCI), from São Paulo, identified only as Wilson, in a comment on the newspaper’s website on May 5, 2010.
That day, Wilson read on the site that São Paulo’s then-mayor, Gilberto Kassab, wanted to demolish the gigantic Costa e Silva Elevated Highway — the viaduct’s official name, though the public had always known it as the Minhocão.
With that construction, Maluf triggered the deterioration of a large portion of São Paulo’s historic downtown, starting in 1971, when the structure was inaugurated by him.
Maluf embodied the kind of career politician convenient for the military regime that had taken over the country following the 1964 coup.
Obsequious and complicit in the military’s abuses, he was appointed mayor of São Paulo by the regime in 1969.
And he soon displayed the behavior typical of the dictatorship’s urban s: total disregard for the historical ambience created by the builders of our country’s past.
An attitude unacceptable in any public manager with even the slightest sensitivity toward intangible urban heritage.
Among which is the historical atmosphere evoked by the simple presence of a house, a palace, or a square built within the urban fabric in an irretrievable moment of the past.
Whose memory is only preserved through the safeguarding of the ambiance that radiates from that architectural heritage, which must be seen as inseparable from the structure itself.
A city does not merely recount its past, says writer and journalist Italo Calvino in Invisible Cities.
The city contains its past, he adds.
Just as the human hand contains its lines.
The past of a city — Calvino continues — is written in the angles of its streets, in the grilles of windows, in the railings of staircases, in the tips of lightning rods, in flagpoles.
Each segment inscribed with scratches, notches, carvings, abrasions.
Roosevelt Square was soaked like a sponge — as Calvino puts it — with the memories of those who visited its art house cinemas and nightclubs in the 1960s, when Maluf extended the 3,400 meters of the Minhocão from that very spot, five meters above ground level.
Even though the square had already been turned into cold concrete blocks by another mayor of that era, Faria Lima.
Maluf named the viaduct Costa e Silva Elevated Highway in an effort to flatter the military dictator to whom he owed his appointment as mayor.
(Only recently was the Minhocão officially renamed President João Goulart Elevated Highway — a belated gesture of justice toward the democratic president ousted by the military.)
Since its inauguration, the Minhocão has brought noise and soot to the buildings along Avenida São João, Rua Amaral Gurgel, Avenida General Olímpio da Silveira, and Largo Péricles.
The value of real estate boxed in by the structure quickly plummeted on the housing market.
And since then, residents have suffered from its degradation.
That is why Kassab’s so-called “insanity” received enthusiastic — through Folha de S. Paulo — from architects, engineers, and urban planners.
Among them: Flaminio Fichmann, traffic engineering consultant; João Virgílio Merighi, professor of transport engineering at Mackenzie University; and Nilson Ghirardello, coordinator of the Architecture Chamber of CREA-SP.
Unfortunately, the Minhocão was not demolished as Kassab had intended.
But over the years, it has been gradually deactivated and transformed into a recreational area.
As for Pará, who among our public s could we expect to show the same blessed “insanity” as Kassab in correcting the appalling distortions brought to our municipalities by the architectural logic of the military dictatorship?
If such a public official were to appear — by some miracle — they would face Herculean tasks in Belém.
They would have to deal with buildings like the ones housing the Palácio Cabanagem, in Dom Pedro II Square, and the former Court of Justice, in Felipe Patroni Square.
Their architecture violently disrupts the historical atmosphere created by the beautiful Government Palace, now Palácio Lauro Sodré, built in the Italian classical style by Antonio Giuseppe Landi in the second half of the 1700s.
And with other similar monstrosities.
Like the building erected during the government of Brazil’s last military dictator, João Figueiredo, on Boulevard Castilho França.
A modernist high-rise completely out of harmony with the historical environment created by the mansions along that boulevard — precious remnants of the export houses of Amazonia’s Belle Époque.
Belém is a 400-year-old creation, shaped by the contributions of 17th-century religious builders, 18th-century military engineers, 19th-century civil engineers from the Rubber Boom, and graduates of Pará’s first School of Engineering in the first half of the 20th century — for whom the art of building was a hard-won achievement.
Not an instrument of urban distortion, as promoted by the military regime.
A distortion which, tragically, did not disappear with the so-called redemocratization of Brazil.
It was preserved through a brutal, anti-civilizational process of urban verticalization.
One Pará native deeply aware of this is historian Geraldo Mártires Coelho.
In an email, he publicly challenged Pará’s authorities.
Geraldo wrote:
“We talk about the city’s heat, but I ask: what kind of legislation allowed the construction of this wall of buildings along the edge of our bay? Towering buildings have been planted along Pedro Álvares Cabral Avenue, between Doca and Arthur Bernardes. And nothing is done to stop or regulate this criminal, predatory architecture. Where is the Public Power? Where does it stand?”
“Oswaldo Coimbra is a writer and journalist
(Illustration: Cabanagem Palace near the Government Palace, by Landi)